domingo, agosto 24, 2008

O culto arboricida

Braga, Inverno de 2008 (na realidade, este tipo de imagem poderia ter sido recolhido em qualquer vila ou cidade portuguesa)


A Júlia chamou-me a atenção para as palavras de João Dubraz, escritor do século XIX, natural de Campo Maior. São palavras com 141 anos, mas ainda bem actuais.


De título bem sugestivo: “Tipos Contemporâneos – O Arboricida

O arboricida nasce como nasce o poeta e o estafador de rimas, o orador e o falador secante, o guerreiro e o poltrão, o homem de Estado e o caturra político, o progressista e o rotineiro, o activo e o indolente, o talentoso e o parvo.
Ainda nas fraldas infantis, nos braços da mãe ou da ama-de-leite, já os instintos destruidores do arboricida se revelam contra toda a planta que se assemelhe a árvore. (…) Decorrido o tempo, o menino tornou-se réu de diversos crimes desta espécie durante as férias das suas tarefas escolares. Por vezes arrepelou as plantas dos canteiros do quintal paterno, atribuindo o estrago ao sujo esgravatar dos gatos. Noutras vezes, encaminhou a mão do irmãozinho para que este faça diante de tidos o que ele próprio receia fazer. Mas, o que sobretudo o atrai é a pequena árvore pública por que roça ao ir para a escola, pois que a vê frágil, apoiada por uma cana, tão maneira, tão sedutora! Daria o mais predilecto dos seus brinquedos para medir a sua força com a resistência que a estaca oferece. Porém, o medo impede-o de tentar. Dizem-lhe na escola que irá para a cadeia onde dão açoites aos meninos que ousem fazer aquilo que ele tanto deseja. E, todavia, o pequeno facínora, que já teme a penalidade e só perante ela recua, apenas orça pelos dez anos! …
Atormentado pela fatal arboricida mania, mas satisfazendo-a sempre que pode, passou o agora adulto arboricida, anos e anos. Inúmeros têm sido os seus malefícios, tantos e tais quantos os que lhe tornou fácil a sua impunidade. Fez-se cínico. Não oculta já, por vezes até exagera, a má paixão que o domina. Desenraíza, abate ou mutila por toda a parte, conforme o capricho do momento. Transformou a bengala em arma ofensiva que, na sua mão, se transformou em instrumento destruidor. Se passeia num jardim, não se pode suster sem decepar alguma vergôntea ou ramo inofensivo: degola sem piedade a flor que se alteia. E, com tão criminosa existência, atingiu os vinte anos sem rugas, sem cabelos brancos e sem remorsos! …
O hábito do crime endurece mais e mais este tiranete sui generis. A impunidade reduplicou-lhe a ousadia. Abalar pequenas árvores que orlam as praças e caminhos, quebrar-lhes as vergônteas, matá-las impiedosamente, são passatempos de insípida vulgaridade. Como os Átilas, os Napoleões e outros tiranos, sonha com campos juncados de mortos: as selvas devastadas e os campos espezinhados deliciam-lhe o pensamento, Quando viaja, se alguma vez, com gesto desdenhoso procura a árvore copada para sob ela conciliar o sono à sua sombra, que sonho pensais que o faz sorrir e arquejar suavemente? … O de imaginar que o seu viçoso dossel foi presa das chamas ou que os seus ramos são desfeitos contra as rochas pelo desbastador do mato, ou que, por acção do carvoeiro, viu transformar-se em carvão o que antes fora planta com vida. Para o arboricida, é terrível acordar vendo incólume a árvore habitante do belo vale. Então, o raivoso tirano evoca as tradições de Nero e diz, parodiando o que aquela fera sanguinolenta terá dito ao ver a cidade de Roma que ardia:
Se eu pudesse reunir num só tronco todos estes parasitas que a terra alimenta, pediria a Deus que me desse um braço bastante forte para os aniquilar de uma vez.
Inspiraram-me estas ideias que acabo de expor, um passeio pela estrada de Campo Maior a Elvas. Havia há pouco tempo, junto ao hortejo dos herdeiros de Vaz Touro, uma superfície de uns cinquenta centiares de terra, coberta toda de choupos, plantados pelo condutor Caldeira quando fez a estrada. Em terra tão pobre de arvoredo como é Campo Maior, a vista pousava deliciosamente naquele pequeno oásis. O que julga o leitor que fui encontrar? … Vi uma hecatombe lastimosa: vi quase todas as árvores abatidas … provavelmente para restituir o mesquinho terreno à cultura de aveia ou cevada! Os cadáveres lá estavam ainda, mutilados e em montão, quase escondidos a um canto do lugar do suplício. Considerei-os por alguns instantes com dor de alma. Via ali a obra de um tugue* de nova espécie. Quem é? Como se chama? Não sei. Que importa o nome do arboricida, se o seu malefício é já irreparável!

* No seu blogue, Francisco Galego esclarece que "tugue" tem origem na palavra inglesa thug, a qual designa os elementos de uma extinta associação religiosa indiana de estranguladores.


Passado quase século e meio, a relação dos portugueses com as árvores continua a ser problemática. Aliás, é mais do que apropriado afirmar que os arboricidas estão no poder!

As árvores são quase sempre um estorvo, tememos que nos ocultem a espiação de quem passa na rua ou da casa do vizinho e temos bem enraizado no nosso "ADN colectivo" essa fobia às árvores grandes, esse medo de que tombem sobre nós ou, pior ainda, sobre o mais precioso dos bens materiais de um português, o seu automóvel!

Mesmo quem afirma gostar de árvores, jura a pés juntos que as árvores precisam de ser podadas para ganharem "força".

Deste modo, o poder político limita-se a fazer a vontade aos que se sentem incomodados com a sombra.

Um mal que, igualmente no século XIX, o grande escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, também anotou ao passar por Lisboa. Para ler com atenção nos "Amigos do Botânico".


Passados quase 150 anos a situação em nada evoluiu. Com os exemplos que podemos observar diariamente nas nossas vilas e cidades e, bem mais grave, nas nossas escolas, estamos a perpetuar gerações e gerações de arboricidas.

Até quando? Não sei, mas sei que o exemplo tem que começar nas escolas.

Sem comentários: